Olá João, mais uma vez,
Vi, pelas datas dos posts, que o blog tem andado muito parado, o que é pena.
Escrevi algo, se achares que é pertinente publicares - é comprido. Obrigado, Abraço
MAnel SD
Claro que grande parte das minhas recordações de infância passam pela Bafatá, na qual tantos anos vivi. Fiz parte do grupo dos mais novos, os que já «nasceram na rua», com uma diferença de 4 ou 5 anos para a geração mais acima, o que se agora é pouco, na altura fazia toda a diferença. Nós éramos os putos.
Hoje, quando vou à rua ver os meus Pais, felizmente ainda ambos vivos e com saúde - velhotes -, registo a diferença entre o que a rua foi e o que a rua é agora. Antes, via-se a miudagem na rua em grandes brincadeiras, a jogar à bola no largo da rua 3, a jogar ao toque nos portões, nas corridas com os carrinhos de esferas, nas bicicletas ou, mais tarde, com a motos.
A acompanhar estas imagens que tenho guardadas na memória, guardo também os sons da rua, que também deixaram de se ouvir. Lembro-me da gritaria normal dos jogos de futebol, lembro-me de saber através do som qual dos portões de jardim se tinha fechado ou tinha apanhado com uma bolada por estar a servir de baliza, lembro-me do barulho dos automóveis de alguns dos vizinhos - o Volkswagen da Dra Caninhas (CE-50-15 - nunca me esqueci da matrícula!), do dr. Taurino, que morava mesmo atrás de nós, a guardar o carro na garagem, da moto dos Salazares e das vozes de muitos de nós na rua, em brincadeira. Recordo-me bem do chinfrim que eram as corridas de carrinhos de esfera rua abaixo, corridas estas bem divertidas. E, claro, lembro-me a toda a hora dos cães da rua a ladrar, pois não faltavam cães na nossa rua que, volta e meia, lá se pegavam todos em grandes zaragatas. Fora do espaço da rua, recordo-me também que diariamente uma mulher dos blocos em frente gritava em plenos pulmões e de voz esganiçada «-Ó Bélinhaaaaaaaa!!!», ou de um assobio ao fim da tarde assobiado a dois tempos para, provavelmente, chamar também a casa um míudo para o fim da brincadeira. A maior distância ainda, lembro-me de pela manhã ouvir muito ao longe o que sempre presumi serem rajadas de metralhadora de treinos militares no Ralis. E, obviamente, além de toda esta «banda sonora» guardo igualmente imagens de todas estas coisas. Hoje, estas imagens perderam-se, aliás, não se perderam todas porque algumas delas foram sendo colocadas aqui no blog, graças ao Joãozinho e à contribuição de alguns (por ironia, hoje, quanto a sons, já não se ouvem os ruidosos carrinhos de esferas e os outros sons bem vivos na minha memória; hoje ouvem-se mais o irritantes carros de instrução, que descobriram que a Cidade de Bafatá é uma rua encantadora, tanto mais não seja para ensinar a fazer manobras).
E, claro, lembro-me a toda a hora dos cães da rua a ladrar, pois não faltavam cães na nossa rua que, volta e meia, lá se pegavam todos em grandes zaragatas.
Mas divagações aparte, vou contar uma história específica que me recordo bem, assim como, estou certo, muitos a recordarão. Não me lembro do ano, mas posso adiantar que talvez se tenha passado nos três ou quatro anos após o 25 de Abril, período no qual as greves eram o pão nosso de cada dia. Pois bem, a história que vos relato refere-se a uma qualquer greve dos serviços de recolha de lixo, que terá suspendido o serviço pelo menos durante três dias, ou talvez mais. Como todos se recordarão, o contentor de lixo era comum a toda a rua, ficava ao pé do portão de baixo dos Altinino e dificilmente chegava já para as encomendas, quanto mais para 3 dias de greve.
Pois este mesmo contentor (que muito habitualmente recebia a visita dos muídos sujos dos blocos, que lá para dentro entravam aos dois e três à procura de algum tesouro - afinal de contas nós éramos os ricos das vivendas!) ao fim de pouco tempo encheu-se, pelo que os sacos de lixo se foram gradualmente acumulando em seu redor, chegando ao fim de alguns dias a atingir uma pilha de tamanho considerável. Não me recordo da estação do ano que vivíamos, mas o tempo estava bastante quente, o que ajudava que os desagradáveis odores de lixo putrefacto pairassem sobre as casas da Bafatá e, certamente, de outras ruas.
Neste período, certamente muitas queixas terão sido feitas para a Câmara, com vista à resolução da situação, mas a terem existido, pouco ou nenhum resultado deram. Até ao dia...
...mais precisamente até à tarde em que a pilha de lixo ultrapassou os limites do suportável, e em que vimos o Senhor Mathez, na sua carrinha Peugeot 404 creme descer a rua, com o seu filho Bernardo, ligar com uma corda o contentor do lixo à bola de reboque da sua carrinha e seguir viagem rua acima até às Oliveiras, para lá despejar o lixo todo, perante a admiração - e agrado - de todos os vizinhos. Não me lembro de quantas viagens foram precisas, duas seguramente, talvez três, viagens estas sempre acompanhadas por míudos como eu, todos entusiasmados nas suas bicicletas a correr atrás da «operação de recolha de lixo» dos Mathez. Para mim, e seguramente para outros, os Mathez foram os heróis do dia, por terem feito o que todos achavam que devia ser feito mas, de preferência usando um telefone e não sujando as mãos. E a Bafatá, apesar da greve geral lá teve direito à sua recolha de lixo «especial» (digo «especial» graças à generosidade do sr. Mathez).
Depois de depositado o lixo nas Oliveiras e de reposto o caixote vazio no seu devido lugar para benefício de todos, não sei o que foi feito para a limpeza da área das Oliveiras, que aconteceu com brevidade, mas estou certo que, mais uma vez, lá esteve metida a eficiência Suiça dos vários membros da família Mathez, que me deram a mim, míudo, e certamente a muitos graúdos também, uma grande lição de civismo e de como se podem resolver pequenos problemas com alguma dose de voluntarismo, mais do que com as habituais queixas e indignações de quem prefere ficar à espera que algo seja feito pelos outros. Aproveito então para mandar um abraço especial ao Sr. Mathez, com quem tive o prazer de estar até há relativamente pouco tempo, e que sempre foi o melhor dos vizinhos como, aliás, esta e muitas outras histórias o demonstram. Um abraço e até breve.
Manel Sousa Dias
JPF «Joãozinho»